quarta-feira, 24 de março de 2010

OBIs: A Suprema Obsessão: Parte II: Quando você se vai...



Você já deve ter tido um inimigo. Aquela pessoa que não pode estar aonde você está, que não pode coexistir com você. Se você nunca teve um inimigo, com certeza ainda terá um. Esses inimigos nos fazem amadurecer, mesmo que há muito custo. Para contar do cara que mais gostei na empresa, é necessário falar do que eu mais odiei também. Seu nome era Edgar. Nos conhecemos no dia do exame médico, conversamos antes de entrar na sala para fazer os exames. Me pareceu boa pessoa, humilde até. Pura fachada. Na empresa, revelou-se o mais insuportável e mesquinho dos presentes. Cada frase que dizia era uma afronta ou uma indireta, principalmente com relação à minha sexualidade. Ele sabia de mim, sem dúvida. Havia vezes em que falava:

"Rod, não precisa ter medo,estamos no mesmo barco. Preto e viado sofrem o mesmo tipo de preconceito."

Ele era negro e parecia menosprezar a si próprio. Minha presença parecia ser para ele uma ofença. Vivia falando de mulheres, perguntava várias coisas sobre eu com elas e eu sempre inventava mentiras, tentando convencê-lo como se isso fosse mudar algo. Eu simplesmente não suportava conviver com ele. O maior motivo de eu querer sair da empresa no vencimento de seu contrato era ele.
Fui efetivado. David deixou a empresa. Edgar me viu triste naquele dia.

"Hah, ele saiu e outro entra. É bom que sobram mais vagas pra gente."

Repulsivo. Eu fazia o possível para ignorá-lo. Um dia, recebi uma tarefa do inventário de retirar alguns pallets do caminho e isso atrapalhou Edgar em um serviço que ele estava fazendo. Eu estava perto do Alvaro quando tudo aconteceu. Edgar veio até mim tirando satisfações e gritando, dizendo que eu estava atrapalhando o serviço dele. Eu sou marrudo, e na hora só me veio continuar meu serviço. Ele foi pra cima de mim e pegou o meu carrinho no qual levava o pallet. Minhas mãos seguraram junto às mãos dele. Lembro que aquele momento parecer uma eternidade. Íamos nos atracar ali mesmo. No dia, quem estava na liderança era Jonas, um rapaz de uns trinta, aspirante a líder e sonhador que sempre ficava de líder na ausência de Dário, o coordenador oficial. Ele veio nos separar, dizendo:

"Ou vocês trabalham juntos ou não sei aonde vamos parar!!"

Minha relação com Edgar não poderia ser pior. Alvaro me chamou de canto naquela noite.

"Rod... Toma cuidado com o Edgar. Ele não é como os outros!! Ele é barra pesada!"

Lembro que aquelas palavras me abalaram enquanto eu dizia não ter medo dele. Eu estava apavorado e pior: Não sabia o que fazer para que ele largasse do meu pé. Usei a tática de ignorar. Passei a não falar mais com Edgar.
Depois de ser efetivado, Dário chamou a mim e ao Alvaro e nos disse que dali em diante, cada um treinaria uma semana no que chamavam de cabine: Uma espécie de cérebro no centro do galpão, onde dois rapazes cuidavam da parte burocrática da empresa, como notas de entrada e saída, verificação de caminhões e alocação de mercadoria. Eu fui o primeiro a ser testado. Fiquei treinando com um rapaz que todos chamavam de nerd. Tinha uns óculos grandes e era anti-social, porém um gênio. Dezenove anos, Roberto parecia ser mais velho. Ele não soube me ensinar absolutamente nada. Eram tantos procedimentos, um sistema de computador intrincado. Eu simplesmente não entendia nada. Aos poucos fui desanimando e meio que desisti. Naqueles dias de começo de mês, era mais interessante ficar com o Alvaro, andando para cima e para baixo, cercando-o e rindo com nossa bela amizade. Enquanto Roberto ficava lá sozinho.

Passaram algumas semanas. Dário me ofereceu uma vaga em um novo setor da empresa. Não pude aceitar, por que o horário de lá era administrativo, das oito da manhã às seis da tarde e eu tinha a faculdade. Mas eu fiz questão de dizer ao Dario que Alvaro separava bem e que o ideal era colocar Edgar no novo setor. Não demorou muito, Edgar mudou de horário em seu novo cargo. Eu e Alvaro ficamos felizes.

Após as semanas de treinamento, começou a correr um boato na empresa que eu seria o próximo auxiliar logístico, o cara que ficava lá no centro do galpão, sentado ao computador resolvendo todos os problemas. Muitos se revoltaram e Alvaro até desistiu de competir. Mas eu não me sentia preparado naquele momento. Enrolava e acabava ficando boa parte do dia com o Alvaro. Na semana seguinte, Roberto parou próximo a mim e ao Alvaro e pronunciou a sentença:

"Alvaro... guarde suas luvas. Você foi o escolhido pra me ajudar no computador!"

O mundo desmoronou. Quer dizer que Alvaro, que entrou depois de mim, estava ganhando a oportunidade de mão beijada e eu estava ficando pra trás... e sozinho naquele galpão?! Toda aquela admiração e brilho que eu sentia pelo Alvaro findaram naquele instante.

No meio do dia, ele veio até mim.

"Cara, meu cérebro está até doendo! É muita informação ali... e o Roberto não ensina bem..."

"É... Também acho."

Depois me calei. Ele olhou para mim.

"Ei, o que foi?"

"Nada."

"Não, perai... Tá bravo por que eu to lá?"

"Não, quem disse?"

"Eu to vendo, né... escuta, foi uma surpresa pra mim também. Semana passada tava todo mundo falando que você ia estar lá... Eu já tinha até desistido. Fiquei feliz por você!! Eu espero que você fique feliz por mim..."

Havia naquele garoto um poder em suas palavras que não podia perceber. Um poder de me convencer. Ele conseguiu me convencer de que estava tudo bem. Combinamos de jantar juntos todos os dias e eu não conseguia parar de ver a hora de jantar. O resto do dia sem ele era insuportável. Quando foi efetivado na empresa, Alvaro comprou uma moto e vivia me contando das inconsequências que realizava com outros aloprados de seu bairro.

Ele pegou o jeito naquele trabalho, enquanto eu queria apenas subir no RH e pedir minhas contas, era insuportável continuar estacionado aonde eu estava. Comecei a investigar por que não tinha conseguido o cargo. Me falaram que Roberto tinha queimado meu filme. Eu sabia que ele era um manipulador. Quis avançar nele, trucidá-lo. Mas lógico que não podia. Fiquei com muito ódio dele. Fui então desabafar com Jonas, o cara que sabia que podia contar ali, pois ele sempre desabafava seus sonhos de virar lider algum dia comigo. Falei que esperava ter virado auxiliar logistico e contei que provavelmente o Roberto havia queimado meu filme.

"Não, Rod... Não foi ele. Quem questionou O Dario sobre sua preparação para o cargo fui eu..."

Mais uma virada de mesa. E das feias. O cara que eu confiava e que tinha voz ativa com meu coorenador foi o responsável por perder a disputa. Fiquei decepsionado. Arrasado.
Para piorar, No fim da tarde daquele sábado, Dario veio até mim:

"Então, Rod... A partir de segunda feira, como a demanda no novo setor está forte, serão feitos dois turnos. Vou precisar que você trabalhe com o Edgar a tarde lá."

Não. Devia ser algum tipo de experimento maligno: Manter eu e Edgar, meu pior inimigo, nos fundos esquecidos da empresa... Nos mataríamos definitivamente. Fiquei sem ação com a ordem que ele me deu. Quando voltei a mim, ele já tinha partido.
Segunda feira, fui para os fundos. Avisei ao Ed e ao Alvaro que logo voltaria, que aquilo não daria certo. Fui para o novo setor, uma espécie de resgate de produtos. Trabalhei o dia todo com o Edgar, evitando falar o máximo que pude. As horas arrastaram-se. Ao fim do dia, faltando cinco minutos para as vinte e duas, horário de sair, Edgar começou a me dizer o que fazer:

"Limpa o chão ai, essa é a nossa área, a gente tenque cuidar!"

"Você não precisa me falar o que fazer."

"Perai, pera... Você não tá aqui pra trabalhar? então você vai trabalhar!! Se não quer trabalhar, cai fora e eu falo pra colocarem outro aqui!!"

Eu era algum tipo de empregado dele? Acho que não. Enjuriado, virei pra ele com ódio.
"Eu achei que isso podia dar certo, cara, mas não vai dar!! To fora!!"

Deixei tudo lá, para ele limpar e caminhei sem olhar para trás. O setor ficava nos fundos da empresa, tinha que andar muito para chegar à área de separação. Fui direto em Jonas.

"Cadê o Dario?"

"O que foi, você quer ajuda?"

"É só com ele!!"

Dario apareceu e eu expliquei a situação.

"Não posso trabalhar com ele!! Não posso!! Me tira de lá!"

Na hora ele concordou, sem pestanejar. Dia seguinte, cheguei com um sorriso indisfarsável no rosto e comuniquei a Ed e Alvaro que meu plano tinha dado certo: Arranjei confusão e voltei para o setor antigo. Os dois ficaram orgulhosos. Durou apenas um dia aquela experiência maligna. Durante toda aquela semana, não fui para o setor dos fundos, meus companheiros ficaram lá. Fiquei sozinho no setor de separação, mesmo sem nada pra fazer. Sábado chegou e Dario veio novamente até mim:

"Eu te garanto, tive uma conversa com o Edgar! Ele mudou, Rod. Eu preciso de você nesse novo setor!!"

Naquela noite, Alvaro pegou sua moto e foi para casa como sempre fazia.

"Você tenque aproveitar as oportunidades de crescimento que a vida te dá, Rod!! Aproveite!!"

Em uma esquina, saía um caminhão de uma empresa. Caminhão baú. Não sei como aconteceu direito. Alvaro desviou de um carro e acabou se jogando contra o caminhão.

"Eu me responsabilizo daqui pra frente. Faça somente o seu trabalho. Não deixe essa chance passar..."

Alvaro bateu de cara contra o baú. Não sobrou nada de sua moto, esmagada pela roda.

Na segunda feira, aquela notícia se espalhou por toda a empresa. Eu fiquei apavorado em busca de notícias.
Caminhei ao setor novo. Lá estava Edgar. Como um cordeiro caminhando para o matadouro, avistei meu pior inimigo, sem saber o destino do Alvaro no hospital. Edgar não me olhou, nem eu olhei para ele.

As portas do novo setor se fecharam nas minhas costas...

Destroços no asfalto...

Naquela altura, nada mais poderia piorar em minha vida...

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